Daqui a quatro meses, prefeitos, prefeitas, vereadores e vereadoras serão eleitos(as) e reeleitos(as) nos 5.570 municípios brasileiros. O processo eleitoral do ano em curso é atravessado pelo agravamento da crise combinada no âmbito político, institucional e econômico que se arrasta desde 2014, e que em 2020 ganhou mais um componente trágico a partir da eclosão da pandemia do novo coronavírus. Pesa ainda contra o país e o seu povo a gestão desastrosa, grotesca e genocida da extrema direita que tomou de assalto a presidência da República, com apoio de setores empresariais e midiáticos inescrupulosos, grupos neonazistas e segmentos religiosos intolerantes e fundamentalistas.

Por Alexandro Reis*

O atual contexto é de aprofundamento da miséria, da violência e de recrudescimento do racismo em várias dimensões da sociedade brasileira. Nessa linha, o centro da batalha do momento é combater o racismo, derrotar o governo fascista de Jair Bolsonaro, defender a democracia e a retomada da economia nacional com distribuição de renda e geração de empregos.

Em novembro do ano corrente ocorrem as eleições municipais, trata-se do mês em que é celebrado do Dia Nacional da Consciência Negra, cujo significado remete à necessidade inescapável da eliminação do racismo, o que exige a participação protagonista de negros, negras e indígenas nos espaços fundamentais de tomada e encaminhamento de decisões.

Atualmente negras e negros, conforme critério fixado na Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), correspondem a 54% da população total do Brasil. No entanto, a representatividade negra, tendo como base a eleição de 2016, foi de apenas 29% considerando os 5.496 prefeitos(as) eleitos(as) no primeiro turno, ano em que a população negra representava 53,6% do contingente nacional. Observando a eleição de 2018, verifica-se que a representatividade negra na Câmara Federal é ainda menor, chegando a 24,4%.

O relatório Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, lançado em 2019 pelo IBGE, com base em informações de 2018, apresenta o quadro da violência racial na dimensão do mercado de trabalho, educacional, representação política, renda, moradia e homicídios de jovens. Em termos comparativos, os dados mostram que negros(as) são 29,9% dos ocupantes de cargos gerenciais e 29,0% da mão de obra subutilizada, já os brancos são 68,6% e 18,8% respectivamente.

Pelo critério de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza a situação é a seguinte: pessoas com menos de US$ 5,50/dia, 32,9% são negras e 15,4% brancas, já com renda inferior a US$ 1,90/dia, 8,8% são negras e 3,6% são brancas. Na mesma esteira, a taxa de analfabetismo da população negra é de 9,1%, enquanto da branca é de 3,9%.  Mais gritante ainda é a taxa de homicídio por 100 mil jovens, quando os dados de 2017 informam que a população jovem negra representa 98,5 e a branca 34,0 dos óbitos. É importante destacar que a taxa de homicídio entre os jovens negros chega à trágica marca de 185,0 mortes, já entre meninos brancos, meninas negras e meninas brancas as taxas são de 63,5, 10,1 e 5,2 respectivamente.

Nesse ambiente de extrema pobreza e desigualdades, com um governo fascista, incompetente para coordenar políticas públicas e tomar decisões estratégicas em favor do povo, a pandemia da COVID-19 encontrou terreno fértil e o país já contabiliza mais 68 mil mortes, podendo alcançar 100 mil até o final do ano. A maioria dos óbitos é de pessoas negras, pobres, residentes nas cidades e em habitações subnormais (favelas, bairros e comunidades em situação de vulnerabilidade).

O cenário acima revela o quão importante é a batalha eleitoral vindoura. O resultado pode apresentar a manutenção, ou aumento, da disparidade das representações políticas já conhecidas. Por outro lado, pode haver alterações, mesmo que pequenas, na configuração dos executivos e legislativos municipais.

Para enfrentar esse grande desafio e produzir mudanças relevantes, em comparação aos resultados de 2016, é preciso reconhecer e atacar fragilidades, ao mesmo tempo potencializar forças internas. No mesmo diapasão, é necessário buscar compreender o ambiente externo da batalha a fim de estabelecer estratégias de mitigação e defesa contra as ameaças, bem como aproveitar de forma assertiva as oportunidades que se abrirão.

Na eleição, como em outras dimensões da sociedade brasileira, o racismo estrutura metodologias, pensamento, organização, forma de financiamento, apoios; e determina vencedores, vencidos, qual será a parcela minoritária dominante e os diversos segmentos que serão continuamente dominados e explorados. Esta compreensão é requisito essencial para qualquer tipo de elaboração técnica, política e estratégica com fito de conquistar espaço e alterar configurações indesejadas da composição de poder no Brasil.

Neste contexto, respeitando peculiaridades, composição populacional diferente e condições de diálogo e encaminhamentos determinados pela correção política local, segue um conjunto de diretrizes para formulação de plataforma política e eleitoral, planejamento de campanha, construção de alianças e estabelecimento de compromissos que não sejam restritos ao processo de disputa do momento, mas que tenham intensidade e alcance de longo prazo.

  • Em razão do histórico do racismo e desigualdades, a população negra é comumente vista pelo viés da negação, invisibilidade e problema. As experiências, produção, capacidade e habilidade de negros, negras e indígenas são desconsiderados no processo de construção de chapas, definição de apoios e disponibilidades de ferramentas necessárias à disputa. Da mesma forma, é preciso inverter a lógica, garantir e providenciar a participação efetiva da população negra e indígena na construção das plataformas políticas para governar as cidades e apresentar proposição legislativa. Nada de negros(as) e indígenas sem negros(as) e indígenas!

 

  • A luta negra e indígena não se iniciou hoje e nem termina com fim do processo eleitoral. O acúmulo de experiência envolvendo erros, derrotas e muitas vitórias deve ser considerado. Uma questão importante é a capacidade de cooperação entre essas populações. Então é preciso aproveitar experiências, trocar ideias, consultar quadros experientes e disponibilizar informações para que mais pessoas compreendam as ideias e propostas, divulguem e repliquem as boas iniciativas.

 

  • É preciso apoiar e dar maior atenção as candidaturas de mulheres e de jovens. As mulheres negras têm liderado a luta política de combate ao racismo e ao machismo no Brasil. Mas ainda são minoritárias nos espaços estratégicos de decisões. Os dirigentes e a militância comunistas devem redobrar esforços para alterar esse quadro vergonhoso e perverso de desigualdade e de cerceamento de participação política das mulheres negras e indígenas.

 

  • A eleição de 2020 será marcada pela força das campanhas nas redes digitais. É um momento oportuno para desfazer estereotípicos negativos e promover imagens de negros(as) e indígenas. É hora de produzir novas narrativas, combater o racismo por meio das redes digitais e estimular a participação desses segmentos na política na condição de eleitores e de eleitos.

 

  • É praticamente impossível vencer uma eleição sem apoio político, financeiro e sem estrutura para realizar campanha. Por isso os comitês estaduais e municipais precisam colaborar e garantir apoio material, infraestrutura de campanha e apoio político para as candidaturas negras e indígenas. Nesse sentido, é essencial o envolvimento efetivo de deputados(as) estaduais e federais no projeto eleitoral do segmento. Agora é hora de reciprocidade e prestar o apoio recebido em 2018, bem como de construir parceria para 2022. É hora de abandonar a retórica e ajudar negros(as) e indígenas a se elegerem.

 

  • Um plataforma política antirracista para as cidades deve conter programas e ações tendo em vista erradicação do analfabetismo entre a população negra, garantir de creche para as famílias negras; efetivação de uma política educacional que garanta o ensino da histórica e cultura africana e indígena; política de promoção da saúde integral da população negra e indígena, saneamento básico e melhoria sanitária nos locais de residência das populações negras e indígenas; urbanização e melhoria das condições de vidas de áreas subnormais (favelas, bairros, periferias etc.), apoio financeiros e técnicos para a cultura e produtores(as) culturais negros(as); apoio à prática da capoeira, reconhecimento e salvaguarda às comunidades tradicionais de matriz africana e indígena; implementação de programa de combate ao racismo institucional envolvendo todas as secretarias de governo.

 

Essas seis diretrizes devem ser desdobradas em ações concretas e decididamente perseguidas. Aqui não se apresenta uma receita padrão e um caminho uniforme a ser seguido simplesmente. O objetivo é estimular a construção do planejamento eleitoral e o compromisso de longo prazo que tenham em seus núcleos uma política antirracista, a defesa da democracia, a derrota do atual governo federal e seus coligados nos estados e municípios, assim como reunir forças para a retomada da economia brasileira com distribuição de renda, geração de empregos e estabelecimento de nova agenda politica em que o interesse do povo seja o elemento mais importante e mobilizador da sociedade.

 

*É secretário estadual do PCdoB/BA de Combate ao Racismo