Alguns comentários e propostas

Por Javier Alfaya*

A abordagem e enfrentamento dos desafios no âmbito da cultura são prenhes de polêmicas apaixonadas e de crescente luta teórica, ideológica e política. Necessário se faz reconhecer que “a cultura” não é um fenômeno homogêneo e coeso, muito distante disso, a cultura é antes de tudo, uma arena de intensas disputas.

A conceituação de “a cultura”, pressupõe a existência simultânea de várias culturas. Somos uma sociedade dividida em classes, interesses e identidades diversas, regiões com muitas personalidades simbólicas próprias, e com matrizes originais às quais se somaram outras tantas, posteriormente. Esse processo é continuo e através de confrontos, aproximações, sofrimentos, alegrias, opressão e libertação, formatou-se a nação brasileira.

No atual contexto sócio-histórico, vivemos um processo muito acelerado, no âmbito da produção, gerenciamento, e comunicações, devido às grandes mudanças de ordem tecnológica. Efetivam-se alterações profundas na produção de bens e serviços, com a circulação gigantesca de grandes somas de riqueza e capital, dramaticamente concentrada em poucos circuitos.

Todo esse processo se dá sob o comando de grandes corporações industriais, de comércio, de produção agro alimentícia, assim como, de grandes corporações de criação e difusão cultural, artística, e conteúdo informacional. Essa realidade constitui e expressa, a hegemonia do sistema capitalista, numa etapa comandada de maneira determinante e insofismável, pelo processo de circulação e especulação financeira.

A etapa histórica atual é igualmente marcada por grandes movimentos de reorganização, quanto à correlação de forças entre países poderosos e seus blocos de influência, como são os EUA, a China, a Rússia, Índia, a União Europeia, o NAFTA, o Japão, e alguns mais, engendrando movimentações de reação e de aglutinação em outras latitudes como na África e América Latina.

Vivemos uma transição para uma nova ordem, ou desordem, mundial. Isso vale para a economia, a influência militar e política, como vale para também para a cultura e as artes.

Os projetos de desenvolvimento com mais autonomia, pretendidos por boa parte das nações e estados da periferia do sistema , como o Brasil, estão postos diante de impasses quanto a seu destino ,pela oscilação do comando político, que agora, de maneira inusitada em nosso caso, empreende um esforço de destruição de estruturas públicas, do parque industrial, da venda de ativos públicos, junto à internacionalização econômica e do sistema financeiro, este último com grande concentração em pouquíssimas empresas, sem a correspondente adoção de quaisquer medidas protecionistas, além do inédito ataque ao sistema público de apoio às artes e cultura, ao sistema universitário público, e igualmente às estruturas da ciência e tecnologia. O governo Bolsonaro/Mourão é um governo de destruição nacional.

Para alcançar um modelo de desenvolvimento econômico social mais maduro e duradouro, faz-se necessário uma visão mais arrojada e comprometida com as transformações favoráveis às grandes maiorias populacionais, moradoras nas grandes urbes, ou nas cidades de porte médio e pequenas. O pais tem 215 milhões de habitantes e 82 % vive em cidades, de todas as dimensões. Vamos tomar algumas referências para o exercício da reflexão e elaboração de propostas.

Caetano Veloso nos lembra em sua música “Sampa”, que “do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas. Da força da grana que ergue e destrói coisas belas”, saem cidades como as nossas capitais. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o mais premiado do país, afirma na Revista Brasileiros, n°108, que, “a cidade não é para nos proteger, é para nos unir. A cidade é o laboratório do homem”. Já o geógrafo Milton Santos raciocina assim: “Diga-se então, que é, a cidade ,lugar de ebulição permanente”.

Uma outra personalidade destacada da intelectualidade brasileira, a professora Otília Arantes da USP, num texto de 2000, lança um raciocínio instigante para quem pensa em política pública de cultura, cidades e planejamento. Diz ela.

[…] Rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana – sempre, evidentemente, em nome de um alegado civismo (como contestar?). E para entrar neste universo dos negócios, a senha mais prestigiosa – a que ponto chegamos! (de sofisticação?) é a Cultura. Essa a nova grife do mundo fashion, da sociedade afluente dos altos serviços a que todos aspiram “.

Outra contribuição vem de Gilberto Gil, imenso criador poético e ministro renovador da gestão ,afirmou em seu discurso de posse :
“Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de bens culturais, sejam eles artefatos ou mentefatos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o desenvolvimento cultural geral da sociedade”.

Essa conceituação abre uma linha de abordagem polêmica, com o próprio Gilberto Gil, ao declarar num outro trecho, da mesma coletânea de textos, que “o exercício das políticas públicas é de certa maneira também um modo de fazer cultura ”. Mas não é a política pública uma função essencial do estado? E assim sendo, ao se efetivar a política pública de cultura, não estaria, portanto, o estado, a fazer cultura?

Existe uma tendência de caracterizar os direitos dos/as cidadãos/ãs, à prestação de serviços de cunho assistencial, ou com a cobertura por parte da administração pública, de várias demandas inerentes ao dia a dia, e à possibilidade de aspiração a uma vida com mais qualidade e usufruto do patrimônio comum; objetivo quase nunca garantido em cidades tão desiguais como as nossas. Em boa medida nem o patrimônio público é, de fato, comum à maioria.

Sendo assim, vale ressaltar que o aspecto mais importante, vinculado ao desafio da inclusão social nas cidades, antecede e influencia as próprias dinâmicas culturais ,e relaciona-se com o problema da atividade econômica vinculada aos serviços e comércio; nalguns casos à indústria também; e noutros, em escala maior, à produção no campo, isto é, no meio rural.

O desafio de geração de empregos em larga escala, da atividade laboral e circulação de riqueza, seja através de relações empregatícias formais, de atividades autônomas, nas de caráter cooperativo e/ou da chamada “economia solidária”, estão sem resposta signiticativa.

Nas grandes concentrações urbanas, esse somatório de fatores, torna nebulosa a perspectiva de grandes intervenções em áreas sensíveis, como saneamento, habitação, transporte de massa, mobilidade, logística, planejamento urbano, e ordenamento do uso do solo, coerentes com as gigantescas demandas, localizadas principalmente nos âmbitos sócio espaciais das classes populares.

No que tange à proposta de política democrática de cultura, no relativo ao seu desenvolvimento conceitual e prática gerencial administrativa, é a de ser implementada preferencialmente por estruturas próprias, como secretarias e fundações, garantindo seu status político ao nível das demais, algo que na maioria das prefeituras ainda não se realiza. É inerente a essa concepção de transversalidade a relação com os demais órgãos, mas com ênfase em áreas como a educação, planejamento , lazer e esporte, comunicação institucional, finanças e turismo. Essa transversalidade ainda se expressa muito pouco na prática, embora seja tema recorrente nos discursos políticos e nas narrativas da burocracia administrativa.

A política cultural comprometida com a democratização da sociedade local, pensada de maneira multifacetada, tem potencial gerador, ao lado das demais políticas estruturantes, de uma vida mais justa, e da possibilidade de avanços na realização das aspirações individuais e coletivas; devendo-se pautar, portanto, por valores solidários, assentados na defesa da democracia, da pluralidade política, na valorização da diversidade, no fortalecimento da organização social e comunitária, na participação cidadã , na pluralidade estética, na liberdade de opinião e crítica, da diversidade étnico racial, de gênero e sexual, da convivência respeitosa entre as religiões e ao direito de não professar religião alguma, da superação das desigualdades socioeconômicas, do desenvolvimento socioambiental e cultural sustentável, e da defesa do desenvolvimento cultural nacional.

1. Implementar a Lei da Emergência Cultural Aldir Blanc. Esta legislação permite a transferência do fundo nacional de cultura para os fundos estaduais e municipais, ou entes administrativos da prefeitura; estabelece a tomada de mediadas como editais, prêmios, compra de bens e serviços; permite a ajuda mensal para espaços culturais de variados tipos, pequenas e médias empresas e organizações comunitárias; estabelece também uma política de financiamento a partir de bancos públicos.

2.Aplicar no âmbito local municipal e também no intermunicipal, neste caso, através de consórcios e entidades de regiões metropolitanas, as diretrizes do Sistema Nacional de Cultura, do Plano Nacional de Cultura, da Lei Cultura Viva, e defender a reconstrução da rede de instituições no âmbito da administração pública da área, como o IPHAN, o IBRAM, a FUNARTE, Casa Rui Barbosa e outros, recompondo o próprio MINC.

3. Assegurar o mínimo de 1% como orçamento local da cultura. Mesmo que não se defina legalmente, propõem-se assumir o compromisso de executar os mínimos de 1% do orçamento nas cidades, e continuar a defesa dos 1,5% para os estados, e 2% ao nível da União. Um instrumento complementar a outras políticas como os editais, importante para o incentivo são as leis municipais baseadas na renúncia fiscal, vinculadas aos impostos municipais, que são o IPTU e o ISS.

4. Articular organicamente a ação cultural com a educação: linguagens artísticas, práticas sociais, costumes, devem se concatenar, a partir do planejamento pedagógico anual, num diálogo com os bairros, comunidades, organizações sociais, pontos de cultura, e outras organizações.

5. Implementar ações baseadas na Lei Cultura Viva e os “Pontos de cultura.

6. Apoiar as tradições culturais locais e o artesanato.

7. Implementar políticas que articulem as ações culturais com as lutas de combate conceitos e práticas conservadoras, de cunho antidemocrático, racista, machista, homofóbico, classista-elitista,e aporofóbico.

8. Defender e desenvolver as expressões nacionais e locais. Posição de caráter estratégico, para um projeto democratizante e popular de transformação. Trata-se de valorizar, tanto no âmbito da criação simbólica, do patrimônio material e imaterial, como na valorização do mercado interno nacional e dos regionais.

9.Implementar as políticas de patrimônio sistematizadas pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, lutando por uma maior variedade e volume de recursos financeiros, tanto para a recuperação e manutenção do patrimônio material e imaterial.

10.Criar Leis Municipais de Patrimônio/Estimular o intercâmbio entre cidades de regiões distintas do país, e entre cidades de países vinculados à nossa formação histórica, dando importância a América Latina e África, e assim buscar fontes diversas de informação na luta por compensar, e também questionar, a atual hegemonia de origem estadunidense.

11.Adotar medidas com o intuito de criar práticas comunitárias democráticas de comunicação, estimulando experiências locais. As Prefeituras e Câmaras tem direito a um canal aberto de cunho educativo/cultural. Existe um movimento de rádios comunitárias, encabeçado nacionalmente pela Abraço.

12.Evitar o esvaziamento e/ou dispersão da política cultural. É questionável a terceirização radical da gestão de equipamentos, levando-se em conta a transparência administrativa e a qualidade dos serviços.

13. Criar escolas abarcando diversas linguagens artísticas e estímulo à cultura digital, com um sentido complementar à formação universitária .

14. Adotar uma política de renovação de bibliotecas, programas de estímulo à leitura, assim como de criação de cineclubes para a formação de público e novos criadores. A referência do cineclubismo é o Conselho Nacional de Cineclubes , o CNC.

15. Adotar modelos de gestão dos equipamentos com caráter democrático e colaborativo ao envolver a população dos bairros e outras representações sociais.

16. Estimular a adoção de práticas culturais regulares por parte de entidades tais como sindicatos e associações, academias de linguagens

17. Induzir a formulação ou revisão dos Planos Diretores e de Desenvolvimento, assim como das Leis Orgânicas do município, e garantir a inserção de capítulos dedicados especificamente à cultura.

18. Defender o significado altamente simbólico que pode existir na paisagem natural assim como já se faz da paisagem construída,

19.O direito à paisagem é algo básico para a cidadania nas orientações urbanísticas /ocupação do território/ parâmetros de construção. Sempre é bom lembrar, que a maior expressão cultural da cidade, é a própria cidade. Cabe utilizar os dispositivos democráticos garantidos pelo “Estatuto da Cidade”, poucas vezes lembrados, menos ainda, respeitados. Igualmente importante é o esforço a ser travado pela elaboração democrática de Planos Diretores das Regiões Metropolitanas

20.Outro desafio, no terreno mais político e ideológico, acerca do discurso próprio das políticas públicas de cultura, é o desenvolvimento e defesa da cultura, ou melhor, de parte dela, como elemento da centralidade no Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.

A cultura como fenômeno geral é entendida com três dimensões já consagradas por conferências da UNESCO. Essas dimensões são relativas à produção simbólica, o direito à cidadania cultural e o expressivo processo econômico.

Uma política pública de cultura profundamente transformadora, nos leva entretanto a elaborar uma quarta dimensão, que envolva o esforço de construção contra-hegemônica ao atual sistema, adquirindo caráter constitutivo da soberania e identidade cultural do país. Isto significa obrigatoriamente trabalhar com uma quarta dimensão, a dimensão do nacional.

A cultura variada e democrática, seja de caráter popular ou de circuitos mais profissionais e intelectualizados, é parte fundamental das ações e políticas geoestratégicas a ser implementadas pelo estado brasileiro, com o intuito de afirmar o Brasil, na cena das disputas, aproximações e alianças internacionais. A democratização cultural é elemento central, na busca por uma sociedade democrática, solidária, soberana se constituindo assim base sólida para uma renovada perspectiva socialista.

Salvador, Bahia, Julho de 2020,

*É secretário nacional de Cultura do PCdoB. Membro da direção nacional. Foi vereador de Salvador e deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil da Bahia.