A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com alguma limitação física ou intelectual e no Brasil o último Censo que fez o levantamento PCD, apontou 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência.

Por Rafael Sallet*

Para entendermos a inclusão das pessoas com deficiência, é importante dominarmos o conceito, estabelecido pela Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa Com Deficiência, e que foi melhor delimitado pela Lei Brasileira de Inclusão – LBI.

Para a LBI, considera-se pessoa com deficiência aquela que:

“Tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Uma releitura do Censo de 2010, sob orientação da comissão da ONU, denominada Grupo de Washington, reclassificou, dentro do grupo de 45 milhões de brasileiros com limitações, aqueles que se enquadrariam na condição de pessoa com deficiência, estabelecendo o número final de 12,7 milhões de pessoas na condição de deficiência, ou 6,7% da população.

Se entendermos os dados censitários como expressão da realidade, vislumbramos um cenário onde quase ¼ dos brasileiros vivem com algum impedimento de longo prazo, dificuldades que não necessariamente se enquadram num diagnóstico de deficiência clássico, mas que representam as condições de limitações físicas, mentais ou intelectuais de brasileiros.

Isso deve servir como elemento de reflexão sobre a prioridade que damos a essa temática quando pensamos nas cidades, visto que a Inclusão geralmente é um assunto periférico nas plataformas eleitorais, nas propostas orçamentárias e  nas políticas públicas.

Conhecendo o número de Pcd’s no Brasil, podemos avançar para compreendermos o papel da inclusão articulada com a democracia.

Não seria um contrassenso pensarmos uma democracia que exclua de suas políticas públicas, um contingente tão grande de brasileiros? Pois essa exclusão, acompanhada de invisibilidade das pessoas com deficiência é regra e não a exceção, e urge darmos centralidade a essa pauta no debate das cidades, pois NÃO HÁ CIDADES DEMOCRÁTICAS SEM POLÍTICAS DE INCLUSÃO.

A questão da inclusão, tão vital para um projeto democrático, tem sido desconsiderada no debate político, ao exemplo das eleições presidenciais de 2018, onde cinco candidaturas presidenciais sequer citaram a questão da deficiência (Jair Bolsonaro, Henrique Meirelles, João Amoedo, Álvaro Dias, Vera Lucia) e os demais trataram a temática de forma genérica.

Se tomarmos a concepção de inclusão no sentido mais amplo, podemos afirmar que incluir é o grande objetivo de toda política pública em qualquer área quando pensamos a cidade. Afinal, os desalentados que dormem nas calçadas, os pobres empurrados cada vez mais para as áreas periféricas da cidade, os pequenos empresários que não conseguem ter sua fatia do mercado ao serem engolidos pelos monopólios econômicos, o doente que espera por anos uma cirurgia eletiva, o estudante que não tem acesso a educação de qualidade, o jovem que não tem opções de arte, lazer e cultura, o desempregado que não consegue entrar no mercado de trabalho… são todos excluídos, e que necessitam de forças políticas que apresentem alternativas de inclusão para superação das desigualdades.

Aqui, no entanto, nos debruçaremos sobre a inclusão das pessoas com deficiência.

Toda pessoa que deseja conhecer e intervir no tema da inclusão, deve conhecer, estudar e lutar pela implementação de três legislações que são referência, e foram construídas através da luta dos movimentos sociais e do protagonismo das pessoas com deficiência. O primeiro texto de estudo deve ser a Convenção Interacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Ele está acessível no link; O segundo texto é a Lei Brasileira de Inclusão; o terceiro texto de estudo é a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.

Talvez o grande esforço de um projeto de inclusão, seja a execução das legislações citadas acima, no âmbito das cidades. Mais do que a construção de novos programas (que podem ser importantes na medida que implementam a LBI), mais do que criar novas legislações municipais (que podem ser relevantes na medida que regulam no âmbito municipal a legislação nacional), devemos estar vigilantes e mobilizados para combater ações que trazem retrocessos nos direitos.

Muitas boas intenções, na criação de leis municipais e criação de programas, estão carregadas de capacitismo, de leis que agravam a situação de segregação ao invés de promover a inclusão, e isso invariavelmente advém de políticas que se importam mais com a publicidade da ação, do que com a necessidade real e que são apresentadas sem a participação protagonista das pessoas com deficiência.

O capacitismo é um adjetivo que podemos entender como análogo a homofobia, ao machismo ou ao racismo, e como ele é estrutural, precisamos fazer uma auto análise de nossas próprias concepções capacitistas, além de estudar e se relacionar com a comunidade PCD, para que tenhamos um olhar mais apurado para as políticas públicas que são propostas nas cidades.

Tendo como objetivo a eliminação de barreiras, sejam elas físicas ou atitudinais, o que podemos propor na área da inclusão, no âmbito das cidades ?

O que trazemos para apreciação não é uma lista extensa, que abarque todo conjunto de propostas possíveis, mas alguns pontos e ancoragem e referência, para cidades mais inclusivas e democráticas:

– O reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais, como língua oficial brasileira, com aprendizado obrigatório no currículo escolar, e ampla oferta de cursos de alfabetização em Libras para sociedade em geral.

– As publicações oficiais por meio físico e digital devem ter elementos de acessibilidade, tais como tradução a Língua de sinais, legendas, fontes aumentadas, áudio descrições, inclusive versões em braile.

– Comunicação Alternativa e Aumentativa como reconhecimento da maneira própria que cada pessoa pode se comunicar. Não raro, mas ainda tímida, são as propostas de comunicação alternativa e aumentativa na relação da pessoa com deficiência junto a seus familiares ou na relação da pessoa com deficiência junto a escola, através de PECS – Sistema de Informação por Troca de Figuras e outras tecnologias. No entanto se o direito da PCD é estar em comunidade devemos avançar nas cidades para que, para além do âmbito familiar e escolar, também os serviços públicos e os locais de atendimentos disponham desse tipo de ferramenta de comunicação, com treinamento dos profissionais e gradual estímulo a iniciativas similares no setor privado.

– projetos e investimento em Tecnologia da Informação, estimulando projetos inovadores, onde programas de computador e aplicativos de tablets e celulares dão voz para pessoas à partir de sistemas que geralmente são pouco custosos e de fácil utilização.

– Construir redes intersetoriais e transversais que permitam a execução eficiente de medidas de desinstitucionalização. Este tema apontado, como prioritário pelo Comité da ONU dos Direitos da Pessoa com Deficiência, em estudo feito no Brasil em 2017 e 2018, explicita a realidade de pessoas que vivem uma vida inteira institucionalizadas. Cabe ao projeto da cidade fortalecer, alocar recursos e estabelecer prioridades na construção ou consolidação de serviços na comunidade para pessoas com deficiência e famílias de crianças com deficiência, realocando os gastos; revitalizar programas para que as pessoas com deficiência vivam de forma independente em suas comunidades e para que crianças com deficiências cresçam com suas famílias em casa; rever e expandir o programa de residências inclusivas; e promover programas de adoção, famílias acolhedoras e apadrinhamento de crianças e jovens com deficiência.

– Destaque para as residências assistidas, que há muitos anos estão estabelecidas na legislação, mas que não são implementadas nas administrações municipais

– A questão da acessibilidade é extremamente ampla e cria um universo inteiro de possibilidade de ações na cidade. Desde o plano diretor, que deve levar em consideração a pessoa com deficiência, ao conceito de “desenho universal”, onde toda produção, seja de um simples documento a um projeto arquitetônico contemple a possibilidade de uso de todos os munícipes, incluindo as pessoas com deficiência e que as adaptações razoáveis permitam acessibilidade para as mais variadas formas de deficiência.

– Segundo o IBGE apenas 11,7% das cidades brasileiras contam com transporte coletivo adaptado para o uso das pessoas com deficiência, e apenas 4,7% das calçadas brasileiras tem algum elemento de acessibilidade para pessoas com deficiência, ou ainda o Censo Escolar, que apontou que apenas 26% das escolas tem acessibilidade, propor a universalização da acessibilidade nas cidades é fundamental.

– Importante trabalharmos a questão da acessibilidade nas áreas periféricas. É comum vermos a engenharia da cidade pensar a acessibilidade na região central, sem o mesmo esmero nos bairros mais afastados.

– A construção de praças, parques, e locais públicos com tecnologias assistivas que permita a inclusão das pessoas com deficiência. Algumas experiências municipais de Lazer, inclusão e acessibilidade devem ser reproduzidos e melhorados. Os locais públicos de encontro do povo, precisam ser pensados e construídos com todas as adaptações razoáveis.

– Quando falamos em acessibilidade, a maior relação que se faz é com calçadas, com arquitetura e adaptação de prédios, mas é muito mais amplo que isso, vai desde a adaptações necessárias para que a pessoa com deficiência possa participar da vida cultural como cinemas, shows e teatros até as tecnologias de comunicação alternativas. Devemos fazer propostas que ampliem e garantam esses direitos nas cidades.

– Lutar pela inclusão, significa avançar nas condições da pessoa com deficiência estudar em escola regular. Além das adaptações razoáveis na estrutura física das escolas, da individualização do plano pedagógico, das adaptações de material, o principal gargalo da inclusão é na contratação e capacitação de profissionais de apoio.

– Tivemos um salto gigantesco de matrículas de inclusão no ensino regular, saltando de 44 mil matrículas em 1998 para 900 mil em 2018. Tal aumento não foi acompanhado pelos estados e prefeituras na capacitação de professores, nem no aumento do quadro de servidores. Apenas 5% dos professores da educação básica tem formação na área da inclusão. O Atendimento Educacional Especializado – AEE, só alcançou um pouco mais que 37% das matriculas de inclusão. A falta de profissionais e de capacitação continuada, são as grandes barreiras que precisamos enfrentar para avançarmos na inclusão escolar nas cidades.

– O direito a saúde da pessoa com deficiência, não pode ser confundido com a visão biomédica de que deficiência é doença. Tal concepção está carregada de capacitismo, daqueles que buscam a cura de determinada deficiência para normatizar a pessoa no padrão médio da sociedade. Isso não significa que não precise buscar a reabilitação, com a superação de dificuldades e apoio ao desenvolvimento, eliminando barreiras que impedem o pleno gozo da vida em sociedade,  mantendo o respeito a diversidade e a neuro diversidade das deficiências.
– A criação de Centros Públicos de diagnóstico e acompanhamento é talvez o mais relevante projeto que pode transformar a vida das pessoas com deficiência, ao promover diagnóstico precoce e apoiar a pessoa com deficiência no avanço de suas capacidades.

– Defesa irrestrita ao direito sexual e reprodutivo das PCDs.

– Capacitação dos profissionais de saúde.

– Atendimento especializado nas consultas eletivas, com prioridade de atendimento.

– Tornar os espaços municipais de saúde, em locais com acessibilidade.

– Qualificar os Agentes Comunitários de saúde a identificar as pessoas com deficiência, fazendo, estabelecendo cadastros e quando necessário, acompanhamento multidisciplinar.

– buscar a descentralização dos serviços, garantindo atendimento próximo do local de moradia.

– A lei de cotas de funcionários com deficiência nas empresas privadas, aumentou substancialmente o número de PCDs no mercado de trabalho. Esse aumento, no entanto, não foi o suficiente para aumentar o índice que hoje é menos do que de 1% dos postos de trabalho com contratos formais, sendo ocupados por pessoas com deficiência. Precisamos avançar nas políticas afirmativas no âmbito municipal.

– Toda pessoa com deficiência é capaz, basta dar-lhe o apoio e as condições de adaptação necessárias para sua atividade laboral.Nesse aspecto, precisamos construir políticas que criem programas de qualificação de pessoas com deficiência. É fundamental que as prefeituras, e Câmaras de Vereadores contratem PCDs, e que sejam feitas políticas extras de isenções e benefícios no âmbito municipal para empresas que contratem pessoas com deficiências, dando especial ênfase a deficiência mental e intelectual, que encontram maior dificuldade de aproveitamento no mercado de trabalho.

– A superação das barreiras atitudinais, talvez seja a mais difícil proposta, por sua complexa execução. A superação de barreiras atitudinais, representa ações, projetos, leis, programas, divulgação e publicidade que impactem a sociedade como um todo, para que paradigmas de preconceito e de capacitismo deixem de estar presentes no dia a dia da pessoa com deficiência.

-A pessoa com deficiência não precisa de pena, nem de “coitadismo”. A Pessoa com deficiência não precisa ser tratada com infantilidade, nem ser subestimada nas suas condições de falar por si. A pessoa com deficiência é uma pessoa de direitos, que deve ocupar todos os espaços da cidade, com liberdade sexual e reprodutiva, com liberdade de expressar opinião, sem a necessidade de tutela.

Enfrentar as barreiras atitudinais, que se materializam quando colocamos o tema da inclusão na periferia do debate, é sem dúvida o maior desafio para a inclusão em uma cidade democrática.

*Rafael Sallet é secretário estadual de Organização do PCdoB-PR, psicólogo, presidente da União de Pais Pelo Autismo de Curitiba, ativista da inclusão e pré-candidato a vereador.