Até 2005, o Brasil não tinha uma política de habitação de alcance nacional. O PLANHAB – Plano Nacional de Habitação se apresentou como uma estratégia de desenvolvimento econômico e inclusão social. A Lei 11.124/05, que montou o SNHIS – Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, sob o comando do, a época, Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação, se propunha a ser uma estratégia de longo prazo, direcionando recursos e focando em quatro eixos estruturantes: modelo de financiamento e subsídio, política urbana e fundiária, arranjos institucionais, e cadeia produtiva e construção civil. Esse conjunto de iniciativas tinha como objetivo final dar moradia digna a todo cidadão brasileiro.

Por Getúlio Vargas Júnior* e Antonio Pedro (Tonhão)**

O programa MCMV criado em 2009 produziu em 10 anos, cerca 5 milhões de moradias populares para famílias de baixa renda. A Faixa 1 do programa atendia famílias com renda até 1800 reais e com subsídio de 90%, feito com recursos do OGU – Orçamento Geral da União e FGTS. Quando foi criado, ainda no governo Lula, ele teve o viés econômico, pois foi usado como medida anti-cíclica para enfrentar a crise financeira de 2008, mas também atendia uma demanda dos movimentos populares que reclamavam um programa de moradia para a baixa renda. Nos 5 primeiros anos, 80% das moradias produzidas (1,5 milhão) atenderam a parcela da população com menor renda. Nos 5 anos seguintes, o Faixa 2 para famílias com maior renda e menor subsídio, teve mais recursos, produzindo 1,6 milhão de moradias, enquanto o Faixa 1 caiu para 387 mil moradias.

O Governo Bolsonaro acabou por assinar o atestado de óbito do Programa MCMV, quando em 2019 deixou expirar as portarias 595 e 597 que permitiriam 35 mil novas contratações (entre urbano e rural), e também quando mandou para o Congresso o orçamento de 2020 com a proposta de 2,7 bilhão, o que representava um corte de 41% nos recursos em relação a 2019, que teve 4,6 bilhão. Em 2019 o orçamento não cobriu contratações novas e nem foi possível quitar as obras em curso. Para 2020 o recurso para o Faixa 1 foi zero e o programa encerrou-se, conforme mostrou a reestruturação do programa feito pelo Ministro Rogério Marinho, do MDR – Ministério do Desenvolvimento Regional. O programa MCMV, de 2009 até 2018 havia criado 3,5 milhões de empregos (CBIC) e gerado 163,4 bilhão em impostos (FGV). Os impactos na indústria da construção civil, na economia e nos empregos serão os piores possíveis.

Atualmente, não possuímos um ministério dedicado ao tema das cidades, ainda que mais de 80% da população brasileira viva em áreas urbanas. A extinção do Ministério das Cidades, que possuía uma Secretaria Nacional de Habitação, foi o mais duro golpe no desenvolvimento das cidades nos últimos 20 anos, e compromete a realização de ações no nível estadual e municipal, uma vez que há menos recursos, menos participação e controle social (o Conselho Nacional das Cidades também foi extinto), e menos corpo técnico qualificado desenvolvendo políticas públicas que possam ser acessadas pelos municípios.

A pandemia e a precariedade das moradias

Dentre os fatores de maior dificuldade que os cidadãos vêm enfrentando, estão a saúde, a renda e a moradia. Este terceiro ponto talvez seja o menos falado nesta crise, e está diretamente relacionado à proliferação da contaminação e às situações de maior dificuldade para o seu controle. Viver em uma casa ou apartamento, num barraco, ou em um quarto de cortiço são experiências muito diferentes de “isolamento social”, e podem ser determinantes para a manutenção da saúde, e da vida, neste momento.

No Brasil, quase 7 milhões de pessoas vivem em habitações com mais de 3 pessoas por quarto, ou em domicílios com mais de uma família, o que impede a prática do “isolamento social”, além de uma população de mais de 13,6 milhões de pessoas que vivem em favelas e assentamentos precários que possuem acesso inconstante à água e a luz, o que traz ainda mais dificuldade para os cuidados básicos de limpeza, e a higienização pessoal. Propor saídas e programas públicos que ofereçam diferentes soluções de moradia é dever do Estado, de acordo com o artigo 6º da Constituição de 1988, já que a moradia adequada, que garanta a dignidade da vida humana, é um dos direitos fundamentais mencionados da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Eleições municipais e a moradia nas cidades

Neste ano de 2020, teremos eleições municipais, e trata-se de uma oportunidade para avaliar como os governos locais vêm lidando com o tema da moradia e com este contexto de combate à pandemia. Cabe assim, ao (e)leitor e à (e)leitora deste artigo renovar ou dar um “basta” a governos que não estejam agindo para a garantia destes direitos fundamentais mencionados: renda, saúde e moradia, entre tantos outros que sabemos fundamentais para nossa vida cotidiana, e que estão relacionados a estes.

Sabemos que o município não consegue agir sozinho na busca por soluções para nossos enormes problemas sociais, mas é no município que “a vida real” tem lugar. É a esfera de governo mais próxima do cidadão, e que tem um grande poder de transformar a vida das pessoas (para melhor ou pior). Para isso, o gestor municipal precisa ter políticas públicas na habitação, articuladas com o Estado e a União.

Os municípios com seu poder executivo, legislativo e a sociedade civil podem se apoiar nos instrumentos federais, como o Estatuto da Cidade(Lei 10257/2001) que prevê a constituição dos Planos Diretores Participativos municipais, assim como, no Artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988, que fala da Função Social da Propriedade e de seu papel para o bem de toda sociedade. Para um desenvolvimento urbano saudável, o poder público deve se manter independente do poder econômico, afim de primar pelo interesse da sociedade, dos que precisam de moradia social e aprimorar os instrumentos que impedem a especulação imobiliária como o IPTU Progressivo no Tempo, a Lei de Uso e Ocupação do Solo e a demarcação de ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social.

As prefeituras devem cobrar dos Estados e da União, recursos para investimento em habitação, que somadas às suas fontes próprias advindas do orçamento, e outras, possam arcar com programas de moradia popular, incluindo diferentes soluções, como a urbanização de favelas, a regularização fundiária e a locação social, realizadas pelas Secretarias Municipais de Habitação ou suas companhias de habitação. Afinal, a habitação de interesse social não pode ser viabilizada sem um alto índice de subsídio, e não pode ser confundida com financiamento aos estratos sociais de renda mais elevada, que deve obedecer a outras regras e exige garantias que este tipo de mutuário não pode dar.

Numa situação de pandemia, o poder público pode requisitar bens privados a fim de acolher pessoas em situação de rua, ou mesmo aos grupos mais vulneráveis, que não teriam como garantir as medidas de isolamento social em suas residências. Experiências de locação de vagas em hotéis, por exemplo, mostram que é possível acolher pessoas e garantir sua saúde. Trata-se, evidentemente, de uma situação temporária, a ser revertida por meio de ações mais amplas, como a garantia do fornecimento contínuo de água nas habitações e de formação de parcerias com a sociedade civil para promoção de construção de unidades residenciais.

Há centenas de experiências de co-gestão, mutirão e de cooperativas populares no Brasil, e milhares, no mundo. A participação de entidades populares na organização da produção habitacional foi uma conquista histórica do movimento de Reforma Urbana, e experiências como esta vêm sendo desconstruídas nas diferentes esferas de governo.

Moradia e a Federação

A moradia é uma das chamadas “competências comuns” do Estado, ou seja, tanto o governo federal, quanto estados e municípios, têm obrigações quanto ao tema, assim como à política urbana, direcionada às cidades, de maneira mais ampla. O governo federal, entretanto, tem um papel estruturante neste caso, já que é ele quem cria as normativas e é responsável pelo direcionamento dos recursos para um lado ou outro.

Os governos estaduais cumprem um papel de articuladores das políticas nacionais com a realidade regional, e ao mesmo tempo, buscam harmonizar políticas locais com o desenvolvimento regional. Em casos específicos, companhias estaduais de habitação são atores relevantes, por possuírem estoques de terras e atuarem como agentes promotores de produção habitacional. A regularização fundiária também e um aspecto importante da atuação dos estados.

Entretanto, é o município quem de fato faz a gestão da política habitacional, e tem papel de destaque na promoção e garantia do acesso à cidade, que vai além da habitação. São as prefeituras as responsáveis pela elaboração dos planos diretores, por exemplo, que dirigem o crescimento e a política de uso do solo do município, permitindo, restringindo ou incentivando o uso habitacional de determinadas áreas. São elas que identificam a demanda habitacional e elaboram as listas para acesso a programas de moradia, como o Minha Casa Minha Vida. Além disso, são elas quem promovem programas como as operações urbanas consorciadas ou as alternativas habitacionais à População em Situação de Rua. É no município que se concentram os instrumentos de ação do Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, e que regulamenta toda a política urbana expressa na Constituição Federal, como as operações urbanas consorciadas e a outorga onerosa do direito de construir.

Apesar da conjuntura de dificuldades, é a partir do município que podemos buscar saídas para esta crise, garantindo os direitos constitucionais. Não podemos esperar muito do governo federal, ao contrário, é de lá que partem os maiores ataques à nossa democracia. Estas eleições são, assim, a chave para transformar nossas cidades a partir das gestões locais, de maneira participativa, inovadora e solidária.

*Getúlio Vargas Júnior é presidente da CONAM e membro da Direção Nacional do PCdoB
**Antonio Pedro (Tonhão) foi Conselheiro Conselheiro Estadual de Habitação/SP. Diretor da FACESP e CONAM