O humanismo nunca foi uma marca da personalidade nem do governo de Jair Messias Bolsonaro (PL), embora ele tente sempre se colocar como um homem de “valores cristãos” e “cidadão de bem”. E isso pode ser verificado em inúmeras declarações, ações e omissões ao longo de sua vida pública e em especial de sua gestão. Um dos traços de sua aversão à pauta dos direitos fundamentais pode ser constatado no desmonte que promoveu em boa parte das políticas públicas, prejudicando diretamente a vida de milhões de pessoas, entre as quais mulheres e crianças.
O caráter machista e misógino do presidente vai além de declarações toscas. À frente da presidência da República, Bolsonaro não apenas deixou de avançar em políticas públicas para as mulheres como fez o Brasil regredir.
No país em que, somente em 2021, foram registrados cerca de um estupro a cada dez minutos e um feminicídio a cada sete horas, talvez o presidente ache que é dispensável promover ações de combate à violência contra a mulher. É o que se pode deduzir quando o orçamento para essa área, sob a batuta da ministra Damaris Alves (“Mulher, Família e Direitos Humanos”), despencou ao seu menor nível.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostrou que os recursos previstos para o enfrentamento à violência contra a mulher para este ano é de pouco mais de R$ 43 milhões, valor inferior aos R$ 61 milhões em 2021.
E antes disso, a situação já não era boa. Entre 2019 e 2020, primeiros anos do governo Bolsonaro, apenas metade do valor autorizado para políticas de enfrentamento à violência e promoção da autonomia foram executados, o que significa que os recursos ficaram em torno de R$ 15 milhões em cada um desses anos. Em 2014, por exemplo, o montante destinado foi de R$ 273 milhões, dos quais 184 milhões foram aplicados.
Ainda com relação ao orçamento para a pasta, a pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Carolina Tokarski, coautora de estudo sobre o tema, explicou ao site Universa que “os recursos direcionados ao Ligue 180 representaram 96% do orçamento total liquidado em 2019. Em 2020, só 25% do orçamento foi executado, e 74% foi para a central telefônica”. Isso deixa claro que o conceito de “política pública” para enfrentar a violência sob a atual gestão consiste apenas em disponibilizar canal de denúncia que, embora importante, não tem o condão de resolver o problema.
Além dessas questões, a crise econômica e social afeta sobremaneira as mulheres de mais baixa renda e que chefiam famílias. Segundo a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), em 2020, o Brasil perdeu 480,3 mil empregos formais, com carteira assinada, sendo que deste total, 462,9 mil (96,4%) eram vagas ocupadas por mulheres.
Nesse cenário, o país tem vivenciado o fenômeno da “feminização da fome”. De acordo com a dados da FGV Social, da Fundação Getúlio Vargas, 47% das mulheres não têm dinheiro para comprar comida para suas famílias. Entre os homens, o número cai para 26%. Isso sem contar o fato de que os cortes e o desmonte da saúde pública afetam drasticamente essas mesmas mulheres.
Infância abandonada
Outro aspecto importante da desumanização do atual governo é a falta de medidas que de fato protejam a infância e lhe assegure condições dignas de saúde, educação e desenvolvimento.
No Brasil de Bolsonaro, até final do ano passado, a estimativa é de que ao menos 18,8 milhões de crianças com até 14 anos passavam fome — em 2020, eram 9,4 milhões — e dessas, ao menos 9 milhões vivem em extrema pobreza, segundo dados da Fundação Abrinq.
Em meio a tão dramática situação, a merenda escolar passou a ser a única refeição de muitas crianças. Mesmo assim, há poucos dias, Bolsonaro vetou o reajuste para a merenda escolar que fora aprovado pelo Congresso, o que possibilitaria um aumento entre 34% e 40% nos recursos, que estão bastante defasados. Hoje, o valor pago por aluno do ensino fundamental para a merenda é de R$ 0,36 e de R$ 0,53 para as crianças da pré-escola.
Vale lembrar também as dificuldades criadas por Bolsonaro para viabilizar a vacinação das crianças contra a Covid e o atraso do governo em iniciar a aplicação. Ele chegou a chamar de “taradas” as pessoas que defendiam a imunização nessa faixa etária e lançou dúvidas, sem comprovação científica, sobre a qualidade das vacinas, dizendo que as supostas reações adversas eram uma “incógnita”.
E, para piorar, programas como o Proinfância (para a construção de creches) e o Brasil Carinhoso (para a superação da extrema pobreza na primeira infância) foram abandonados.
Mas, para o presidente, talvez nada disso seja problema. Para quem defendeu o trabalho infantil em mais de uma ocasião — em 2019, por exemplo, chegou a declarar que “o trabalho infantil não atrapalha a vida de ninguém” — cuidar da infância talvez seja “frescura”.
Por Priscila Lobregatte