O Hospital A.C. Camargo, centro de referência no tratamento contra o câncer vai suspender o atendimento a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de dezembro. A decisão ocorre, segundo a instituição, em função da defasagem da tabela do SUS para consultas, procedimentos e cirurgias.
Por conta disso, todos os anos o hospital é obrigado a aportar recursos próprios para cobrir as despesas. Outras áreas, como a da diálise, enfrentam situação semelhante.
Em 2021, por exemplo, a receita do SUS foi de R$ 36 milhões e o A.C. Camargo teve que injetar mais R$ 98,46 milhões, vindos dos atendimentos privados, para fechar as contas. A receita líquida da instituição em 2021 foi de R$ 1,32 bilhão.
Com quase 70 anos de tradição no tratamento do câncer em São Paulo, o A.C. Camargo foi o primeiro hospital da capital paulista construído com doações da população. Não era vinculado a nenhuma instituição de saúde oficial, não tinha respaldo financeiro de organizações religiosas, ou patrocínio de colônias de imigrantes, como era comum na época.
Com o tempo, também se tornou referência internacional em ensino e pesquisa sobre o câncer. A medida faz parte de um plano de readequação em razão da defasagem da tabela do Sistema Único, “que ameaça diretamente a existência da Instituição”, diz o AC em nota.
“Para que essa movimentação seja possível, o atual convênio com a Prefeitura Municipal de São Paulo para atendimento aos pacientes do SUS não será renovado”, prossegue o texto.
A instituição, mantida pela Fundação Antônio Prudente, que leva o nome do seu fundador, comunicou no início do ano a decisão à Secretaria Municipal de Saúde, com quem mantém contrato até 9 dezembro deste ano. Os recursos vêm do Ministério da Saúde direto para o município, que os repassa ao hospital.
A Secretaria Municipal de Saúde disse por meio de nota que foi informada pela fundação sobre a não renovação do contrato e informa que tem realizado reuniões para avaliar a possibilidade da continuidade da assistência por meio da parceria.
A gestão assegura, porém, que a assistência em oncologia aos pacientes da rede municipal seguirá sendo ofertada por meio dos demais prestadores municipais do serviço, como o Hospital Municipal Dr. Gilson de Cássia Marques Carvalho–Vila Santa Catarina, e outras unidades reguladas por meio da Central de Regulação de Oferta de Serviços em Saúde (Cross), do governo do Estado.
Por sua vez, o Ministério da Saúde diz que “a tabela não constitui a principal e nem a única forma de financiamento do SUS” e que “os valores são referenciais mínimos, podendo ser complementados pelos gestores estaduais e municipais, de acordo com as demandas e necessidades de cada território”.
Cerca de 1.500 dos 6.500 pacientes do SUS atendidos pelo A.C. Camargo já foram transferidos pela gestão municipal para centros oncológicos da capital. Outros 5.000 devem ser encaminhados até dezembro, segundo o hospital.
Tabela defasada
Não são apenas os pacientes do AC Camargo que estão enfrentando à ameaça de ter o tratamento suspenso. Mais de 1.500 procedimentos hospitalares incluídos na Tabela SUS, padrão de referência para pagamento dos serviços prestados por estabelecimentos conveniados e filantrópicos que atendem a rede pública de saúde, estão defasados. O levantamento é do ano passado.
O número aumenta se forem levados em conta os atendimentos ambulatoriais, não apontados neste levantamento realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre a perda acumulada no período de 2008 a 2014, com base em dados do Ministério da Saúde.
Com a defasagem da tabela de procedimentos do Sistema Único de Saúde, usada para os serviços hospitalares prestados pelos estabelecimentos conveniados à rede pública de saúde, as despesas das famílias superam os gastos do governo para a área, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As despesas com o consumo final de bens e serviços de saúde no Brasil atingiram R$ 711,4 bilhões em 2019, início do mandato de Jair Bolsonaro (PL). Desse total, R$ 283,6 bilhões (3,8 do PIB) foram gastos do governo e R$ 427,8 bilhões (5,8% do PIB), de famílias e instituições sem fins lucrativos a serviço das famílias.
De acordo com o IBGE, a despesa empregada em bens e serviços de saúde por pessoa, na ocasião, foi de R$ 2.035,60 para famílias e de R$ 1.349,60 para o governo. O principal gasto das famílias foi com serviços de saúde pública, que incluem despesas com médicos e planos de saúde — equivalem a 67,5% do total das despesas de consumo final de saúde.
A perda acumulada nos honorários médicos em determinados procedimentos chegou a quase 1.300%, aponta a estimativa do CFM, feita pela última vez em 2015. Segundo o levantamento, o médico recebia R$ 10 por cada consulta ambulatorial realizada no SUS.
Ainda de acordo com o estudo, os honorários médicos para o tratamento de doenças do fígado, como hepatite ou cirrose, chegam a apenas R$ 59,70, divididos pelo tempo médio de oito dias de internação do paciente. Ao fim do tratamento, corresponde a uma diária de R$ 7,46.
De 2008 a 2014, a média diária de pagamento teve reajuste de ínfimos R$ 0,35. No final da comparação, pelos índices de inflação acumulados no período, hoje estaria, no mínimo, em R$ 10,50.
A tabela de procedimento do SUS lista, por exemplo, os valores de honorários de quase 5 mil procedimentos médicos, que vão desde atendimento em ambulatório até cirurgias mais complexas, como transplante de coração.
Além da defasagem de décadas na tabela do SUS, especialistas criticam ainda o modelo de financiamento de recursos, dividido atualmente entre os três entes federativos: União, estados e municípios. As perdas – milionárias – apontam, foram ocasionadas, principalmente, a partir da Emenda à Constituição 95/2016, editada durante o governo de Michel Temer, que congelou os recursos para a saúde.
Estimativas do Conselho Nacional de Saúde apontam que a medida retirou do SUS recursos na ordem de R$ 42,5 bilhões nos anos de 2018 e 2019 (pré-pandemia da Covid-19) e no ano de 2022. A Emenda, avalia o Conselho, impede o atendimento das necessidades sociais da população mais necessitada.