Algum tempo atrás não se falava mobilidade, era luta pelo transporte, centrada no debate do transporte por ônibus nas grandes cidades. Da péssima qualidade do transporte aliada ao alto preço das tarifas: Podemos lembrar de greves nos anos 1980 em todas grandes cidades do Brasil e suas periferias, buscando garantir um transporte melhor, ao menos dignidade. Os ônibus não chegavam onde as comunidades moravam, não subiam morro, nem entravam nas comunidades, em muitos casos as pessoas terminavam suas viagens caminhando.
Por Getúlio Vargas Júnior*
Naqueles tempos a alternativa eram as greves do transporte, paralisação coordenada pelos trabalhadores, lideranças comunitárias e estudantes. Muitas vezes estas greves acabavam com ações violentas contra os manifestantes e algumas janelas de ônibus quebradas e pneus furados. Estas mobilizações entraram para história das cidades e jogaram papel na busca da melhoria das condições e sistemas de transporte.
As lutas pela mobilidade são históricas, passaram pela luta da Constituinte de 1988 e nas mobilizações pelo Estatuto das Cidades, outros debates e construções. Nas cidades seguiam as mobilizações e ações na defesa do transporte de qualidade. E a luta era muito árdua, em muitos lugares a pressão era grande, não havia concessões ou licitações do transporte, não haviam regras que cobrassem os direitos passageiro e um lobby muito forte junto aos vereadores e muitas vezes ao próprio prefeito. Se mobilizar era a única alternativa de melhorar.
Na maioria das grandes cidades e regiões metropolitanas na prática se consolidou dois sistemas de transporte coletivo: um que atende as regiões centrais, equipamentos públicos e universidades e bairros nobres. Este primeiro caracterizado por ônibus mais novos, frequência menor de ônibus, mais segurança e qualidade. O segundo era para a periferia e bairros afastados. Caracterizado por ônibus lotados, com frequência menor e veículos velhos.
A construção das políticas urbanas e a Política Nacional de Mobilidade Urbana
Somente em 2003 com a criação do Ministério das Cidades e a criação da Secretaria de Mobilidade do Ministério passa a ser vista como uma política nacional, que precisa ser estruturada. Entre a criação do Ministério e 2012, na aprovação da Política Nacional de Mobilidade Urbana demoram 9 anos.
A lei consolidou avanços fundamentais para tornar o transito e mobilidade nas cidades mais democráticos, avançando em práticas e conceitos que priorizem as pessoas e o meio ambiente, em detrimento do transporte individual motorizado (carros e motos).
Ela foi é a quarta lei setorial das políticas urbanas, que se somou ao Estatuto da Cidade, lei 10.257, ao Fundo e Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, lei 11.124, e o ao Marco Regulatório do Saneamento, lei 11.445. Aprovada com poucos vetos, esta lei foi a síntese de um debate de praticamente 25 anos e que estava sendo articulada desde a criação do Conselho Nacional das Cidades.
A Lei da Mobilidade prioriza o transporte público coletivo e os meios não motorizados de transporte, como a bicicleta, integrando-a com os modos de transporte coletivo. A integração dos múltiplos modais. As questões ambientais também estão entre as prioridades da Lei, que estabeleceu diretrizes para a redução da emissão de poluentes incentivando a valorização das formas não-motorizadas de transporte e o incentivo de criação de vias para pedestres nas cidades brasileiras.
Sobre a Política a lei afirma: “A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana. O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município. ”
Entre os objetivos da lei destaco: a) redução das desigualdades e promoção da inclusão social; b) promover acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais e c) proporcionar melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade;
Talvez o principal legado da lei seja a necessidade Plano de transportes e trânsito para as cidades com mais de 20 mil habitantes. Este plano deve dialogar com Plano Diretor, Plano de Habitação e Plano de Saneamento da cidade. Mas a elaboração do plano em si não basta ele deve ser elaborado de forma democrática e participativa, integrado com os outros planos setoriais entre os quais o Plano Diretor.
Já se passaram mais de 8 anos desde que a Lei entrou em vigor e muito pouco saiu do papel e entrou na realidade das cidades. Atualmente a principal proposta que tem sido debatida e defendida é a da construção de SUM – Sistema Único de Mobilidade, no sentido de integrar e organizar as políticas de mobilidade em todo Brasil, em especial nas capitais e regiões metropolitanas. Ainda percebemos muita dificuldade de ação e dialogo quando os sistemas de transporte atuam em duas cidades.
A mobilidade e as eleições municipais de 2020
As cidades atravessam grandes crises, aprofundadas pelo impacto da pandemia, que aprofundou a crise do desemprego e estagnação econômica. Um dos setores em maior fragilidade é a mobilidade urbana.
As eleições se darão no meio deste processo, com cidades buscando soluções e com diversas pautas no centro do debate, desde o pagamento do funcionalismo, até a garantia do investimento previsto em lei nas áreas de saúde e educação.
Mesmo diante desta crise o processo eleitoral é uma oportunidade de apresentar uma nova agenda, debater propostas e buscar construir coletivamente novas soluções e apresentar alternativas paras cidades.
Infelizmente não podemos contar com apoio do Governo Federal nem para incentivo de programas e ações que barateiem o transporte, muito menos para a retomada das obras estruturais da mobilidade urbana no Brasil. Devemos continuar pressionando e buscando alternativas, mas este processo eleitoral se dará com Bolsonaro no comando do país, no máximo em algum tipo de transição que não vai apresentar alguma guinada na política econômica e de infraestrutura.
A política de desenvolvimento urbano, apesar de ser responsabilidade do Governo Federal, Estaduais e prefeituras, acontece e se desenvolve nas cidades, desta forma é preciso pensar soluções para a moradia, saneamento e mobilidade na cidade de forma integrada e com transversalidade. Em cenário de pós pandemia a questão do transporte coletivo será um dos gargalos para se resolver nas cidades. Todas terão que fazer uma avaliação dos seus contratos, do número de usuários, do impacto da pandemia em sua economia, do afastamento social e do valor da tarifa.
Neste debate da tarifa em algum momento teremos que encarar o debate das gratuidades, por um lado setores querem acabar com a gratuidade ou isenções. Porém é injusto que o conjunto de usuários pagantes paguem as isenções. A cidade deve debater a possibilidade de um fundo de mobilidade na cidade que pague as isenções, isto pode representar uma redução média de 30% no valor da tarifa, mas sempre cuidando para o debate não rebaixar para a retirada de direitos adquiridos, em especial dos estudantes e idosos.
Mesmo assim tem questões que passam pela organização e precisam de baixo investimento. O aumento da velocidade dos ônibus é uma forma de tornar o transporte coletivo mais atrativo. Neste sentido a marcação de faixas exclusivas para o transporte coletivo e proibir estacionamento nas ruas em que passam os ônibus são medidas importantes.
A integração e racionalização do sistema também cumpre papel importante, é preciso avançar em medidas de que melhorem o sistema e diminuam o preço das tarifas. A integração com outros modais também é uma medida importante. Hoje é impensável em se fazer um terminal ou estação que não tenha bicicletário ou estacionamento.
A regulamentação dos aplicativos da cidade devem reverter recursos para o sistema de transporte da cidade, não pode cair no Caixa Único. Sabemos que a prefeitura geralmente passa por crise financeira, mas os aplicativos ajudam a desequilibrar o sistema de transporte da cidade, e este recurso da regulamentação deve voltar para a estruturação da mobilidade.
A mobilidade ativa das cidades deve ser incentivada, as cidades devem ter calçadas adequadas e a construção de ciclofaixas, para deslocamento a pé e de bicicleta, além de ser alternativa saudável em muito caso é o único meio de transporte de muitos trabalhadores em virtude do preço das tarifas e do alto desemprego.
O debate da mobilidade ativa, a integração entre modais de transporte e a qualidade do transporte são temas sensíveis. As necessidades da periferia e região central das cidades são diferentes, embora todas apontem para o aumento da velocidade da viagem, frequência dos ônibus e valor da tarifa.
Por fim a ideia da Tarifa Zero é muito sedutora, porém ela necessita de uma integração de esforços e investimento grande na cidade. Estima-se que seria necessário, estudos pré-pandemia, de mais de 80 bilhões de reais anuais (além dos subsídios já existentes). É uma ideia que deve ser debatida, mas com a compreensão da complexidade para sua implementação.
Neste sentido a mobilidade é um debate muito particular e de acordo com a realidade de cada cidade, porém com problemas geralmente comuns, agravados neste momento pelo impacto da pandemia em diversos aspectos da cidade. Somente dialogando com a população, consultando todos setores da sociedade e buscando alternativas com participação e criatividade podemos apontar caminhos e construir soluções para o transporte coletivo e mobilidade nas cidades.
*É presidente da CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores e do Instituto MDT – Movimento de Direito ao Transporte Público de Qualidade, membro da Direção Nacional do PCdoB.