O ano de 2020 passará à história brasileira como um dos piores já vividos pelo Brasil diante da pandemia de coronavírus e do desastroso governo Bolsonaro. Mas, também é um ano marcado pela maior visibilidade do debate sobre racismo no país como um contraponto à onda de extrema-direita, que traz consigo toda ordem de preconceitos, violência e violações.

Seja pelos atos desencadeados pelo mundo a partir do assassinato de George Floyd, seja pela resistência dos movimentos negros à ascensão fascista no Brasil, o fato é que o assunto ganhou mais projeção, ao ponto de ser questão-chave mesmo para as eleições municipais deste ano. Soma-se a este cenário a recente decisão do ministro do STF, Ricardo Lewandowski, determinando que a cota financeira para candidatos negros seja aplicada já nestas eleições municipais.

Racismo estrutural

O racismo na sociedade brasileira não é novidade, mas, nos últimos anos, a perda do pudor de alguns setores em demonstrarem seus preconceitos fez com que caísse de vez o mito da terra miscigenada que convive bem com as diferenças. Está cada vez mais latente o caráter estrutural, sistêmico e institucional do racismo, que se reflete em aspectos que vão do tratamento das crianças negras antes mesmo de nascerem até a baixa participação nos espaços de poder e decisão, passando pelo extermínio de jovens negros e pela precariedade vivida pela grande maioria dessa população.

No campo da política, por exemplo, a sub-representação negra é enorme. Segundo o IBGE, esta população representa 56% do total de brasileiros. Mas, nas eleições de 2016, os candidatos brancos foram 51%, enquanto pardos foram 39% e pretos 9%. Dentre os eleitos, 59% eram brancos, 26% pardos e apenas 5% negros; indígenas e “amarelos” somaram apenas 1% tanto dos candidatos quanto dos eleitos, segundo dados do TSE e IBGE compilados pela Folha de S.Paulo. Em 2018, dos 27 governadores eleitos, 24 eram brancos; também eram brancos 41 dos 54 senadores vitoriosos e 384 dos 513 deputados federais.

“Há uma sub-representação profunda de negros e negras nos espaços de poder e decisão, especialmente das mulheres negras, o que considero uma grande violência, como se as mulheres não tivessem capacidade ou legitimidade de representação”, diz Edson França, secretário adjunto de Movimentos Sociais do PCdoB e vice-presidente da Unegro.

Conforme apontado pela ONG Oxfam, “apesar de 27% da população feminina se declarar negra, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, mulheres negras representam apenas 2% do Congresso Nacional e são menos de 1% na Câmara dos Deputados”.

Ângela Guimarães, presidenta licenciada da Unegro e pré-candidata a vereadora pelo PCdoB em Salvador, considera que “do ponto de vista das mulheres no geral, há uma avanço que é a reserva dos 30% das vagas. Só que dentro dessa reserva não há previsão de uma proporcionalidade racial. Então, quando é possível preencher essa cota, a gente não vê a representatividade das mulheres negras, a gente vê as mulheres brancas, que se inserem no padrão eurocêntrico de imagem e de representação. No imaginário que permeia os espaços da política e da mídia, não é a cara de uma mulher negra que se imagina quando se está falando da mulher em geral”.

Segundo Ângela, nos partidos em geral, a base “é formada sim por uma maioria negra, com grande presença e protagonismo das mulheres, sobretudo liderando experiências de luta nas frentes comunitária, de mulheres, negros, sindical e na juventude. Então, essa base é, de fato, uma base negra, esse protagonismo nos movimentos é real. Só que quando a gente vai dar o passo seguinte, que é estabelecer essa presença nos espaços de decisão e de poder, há uma série de barreiras raciais e de gênero que impedem a ascensão das mulheres negras”.

Ou seja, diz, “a gente consegue ser maioria na militância, mas não consegue ver essa militância refletida nas direções partidárias. Consequentemente, isso também não é levado em consideração na montagem das chapas para as disputas eleitorais”, daí a importância de haver cada vez mais mulheres negras candidatas, “tendo apoio dos partidos para que possam fazer disputas saudáveis e em condição de eleição”. Ela considera que o ano de 2020 representa “um momento de amadurecimento interno e de avanço muito grande” do PCdoB em relação à representação da população negra em suas candidaturas.

“Temos o desafio de fazer com que os partidos verdadeiramente comprometidos com a justiça social, a equidade racial e de gênero, com a luta por cidades mais democráticas, mais solidárias, com gestões que tenham como centro o desenvolvimento com distribuição de renda e acesso aos direitos sociais compreendam que a base da nossa pirâmide é formada pela população negra, em especial as mulheres negras, e que essa base é afetada pelas deliberações desses espaços de decisão e quer ser protagonista também na elaboração e fiscalização das leis, na sugestão das políticas públicas e na implementação de projetos transformadores de cidade”, explica.

Ela cita as candidaturas de Olívia Santana à Prefeitura de Salvador e a de Orlando Silva, em São Paulo, como exemplos de valorização dos negros e negras na política e como instrumentos importantes de luta para a superação do racismo e para a gestão das cidades com foco nas questões que envolvem o cotidiano dessa fatia da população. “Quando a gente fala de desigualdade racial, de uma plataforma antirracista, quando a gente denuncia a sub-representação negra nos espaços de poder, nós não estamos fazendo uma reivindicação meramente identitária. Muito pelo contrário: a gente está denunciando como essa ausência negra nos espaços de poder reflete a forma como o racismo estrutura o conjunto das relações na sociedade brasileira, como o sistema produz e reproduz essas desigualdades. Então, encarar e enfrentar o âmago dessas estruturas é impossível quando a maioria que participa da produção de riquezas, da sociedade, que organiza a luta política, não tem as suas pautas levadas em consideração e não consegue ser protagonista nesses espaços de poder, decisão e representação; 2020 representa um salto extraordinário em relação à compreensão sobre este tema”, conclui.

 

As candidaturas negras e o PCdoB

Edson França avalia que as candidaturas negras vêm num processo de ascensão, sobretudo após os governos de Lula e Dilma Rousseff. “O ativismo da população negra, no sentido de construir uma participação na política e por representatividade cresceu, sobretudo, em razão da maior participação dos movimentos sociais e das pessoas mais simples na política — as conferências, por exemplo, foram importantes para isso, bem como a própria consciência do movimento negro de que não adianta ficar de fora. É preciso também fazer a luta dentro dos espaços institucionais e apresentar a pauta antirracista, de maneira que os negros não sejam apenas aqueles que demandam, mas também aqueles que têm capacidade de buscar meios mais objetivos de resolução daquilo que é a sua pauta”.

Edson também aponta como fator crucial para essa mudança as política afirmativas e de cota que garantiram maior acesso dos negros à universidade. “Nós, negros, éramos 2% da comunidade discente no Brasil e hoje chegamos a 10%. Então, cada dia mais as universidade brasileiras têm a cara negra. E são jovens que saem de lá com uma visão mais crítica sobre o Brasil”, argumenta.

Sobre o contexto político atual, Edson avalia que a ascensão de Bolsonaro ao poder não intimidou, mas sim estimulou o fortalecimento da luta da população negra. “Bolsonaro, o ódio e a tentativa de destruir a pauta da igualdade racial levaram à maior participação dos negros. E vemos isso no próprio PCdoB. Em São Paulo, por exemplo, mais de 50% da chapa a vereadores é de negros. E temos a campanha de um homem negro, Orlando Silva à Prefeitura, com uma pegada forte neste debate. Este é apenas um exemplo e mostra que a participação negra nas eleições se acentuou. E vai aumentar mais com a decisão do STF. Apesar de muitos partidos não gostarem disso, é importante porque gera maior possibilidade de participação dos negros e das mulheres. É um caminho que tende a avançar”.

Para ele, “o PCdoB está dando uma grande contribuição para o Brasil neste tema. Em duas grandes capitais, o PCdoB apresenta candidaturas negras vinculadas ao debate antirracismo”. E lembra que o partido sempre contribuiu para essa luta, “tanto que nossa bancada sempre teve número de mulheres e negros equitativo. É preciso que todos os partidos olhem para este tema”.

Ele destaca o papel de Olívia Santana (foto) na capital baiana. “É uma candidatura negra, consciente de que o racismo precisa da atuação do Estado para ser combatido e consciente também dos limites que a sociedade brasileira tem de assimilar essa pauta. Acredito que Olívia vai jogar um papel muito importante nessa eleição, popularizando a pauta antirracismo, em Salvador, na Bahia e no Brasil.  É uma candidatura de um quadro orgânico do movimento negro e que fez do combate ao racismo seu lugar de trajetória política”. Quanto à candidatura de Orlando Silva em São Paulo, Edson destaca: “ele é qualificadíssimo, um grande quadro que também terá papel fundamental, certamente vai arregimentar um público que se preocupa com o tema da igualdade e vai sair com uma vitória política importante”.

O dirigente comunista aponta ainda que o PCdoB se coloca como “um polo importante de recepção de negras e negros progressistas, que querem um país melhor e que têm na luta antirracista uma pauta importante”. O Partido, diz, “está de parabéns nesse tema; o que a gente precisa é construir um discurso que unifique negros e brancos. Precisamos avançar mais. No ano que vem, teremos uma conferência para debater este tema e acredito que vamos dar passos importantes na luta antirracismo e na formulação de um discurso que nos ajude a caminhar de maneira mais coesa”.

Do ponto de vista do encorajamento das candidaturas negras no PCdoB, Edson argumenta que “o estímulo do partido é o que ele é e faz: uma boa política, uma ação não discriminatória, com a presença de negros e negras em todos os espaços da hierarquia partidária e que nunca negou voto para o tema racial”. Em matéria de combate ao racismo, diz, “os comunistas do Brasil não devem nada”.

 

O racismo e as cidades

O debate sobre projeto de cidade está diretamente ligado à luta pela superação do racismo e das desigualdades e se coloca como ponto central da construção de uma via transformadora para o país.

“O racismo é uma fronteira de ódio objetiva, que tem como significado e decorrência a morte das pessoas, a violência, o cárcere, a pobreza. Decorrem do racismo as piores mazelas sociais. Por isso, as pessoas que se convencem e trabalham com essa pauta de maneira orgânica têm uma luta perene”, explica Edson França. E constata: “O Brasil é um país com alta incidência de racismo, onde o lugar do negro é muito bem determinado e estamos numa luta árdua para que esse lugar do negro não seja o lugar da miséria, da pobreza, da morte e para que as oportunidades, os espaços de poder e de decisão, a dignidade sejam também para os negros”.

Neste sentido, diz, a pauta central da população negra neste momento é a defesa da vida. “O Mapa da Violência mostra que a quantidade de assassinatos no Brasil é próxima de países conflagrados e o percentual de jovens negros que morrem é muito elevado: 75% das pessoas assassinadas no Brasil são jovens, homens e negros. Nos cárceres, a maioria também é de negro. Então a violência, a pandemia, a ausência de serviços são fatores de letalidade para a população negra. A vida é nossa principal pauta. Queremos viver”. 

Edson ressalta que é urgente estancar os fatores que levam à tamanha brutalidade, o que exige ação conjunta entre União, estados e municípios. “Cabe na pauta municipal o debate sobre medidas que evitem e mitiguem a violência. Muitas vezes, coisas simples podem fazer diferença: um parque para a prática esportiva, uma biblioteca, oportunidades no campo do trabalho e da cultura são elementos que atraem os jovens e os distanciam da criminalidade”, ressalta. Ou seja, o município pode ajudar sobremaneira na medida em que investe em políticas públicas e incorpora os jovens. São fatos que incidem de forma inequívoca na manutenção da vida”. A omissão do Estado, diz, “também é um fator gerador de letalidade”. Na avaliação de Edson França, “o racismo é uma doença que gera sintomas e impactos negativos em toda a sociedade e não tem serventia, apenas para uma pequena minoria que lucra com a superexploração que o racismo permite”.

“Eu acredito que desde a redemocratização essa vai ser a eleição onde a gente vai ter uma maior ênfase à pauta de combate ao racismo”, opina Ângela Guimarães. “É um tema irrefutável, que quem não tocar, parece que não vai estar vivendo esse debate racial hoje”, diz. A comunista explica que “a pandemia escancarou as desigualdades sociais, raciais e de gênero que a gente vive no Brasil. É incontestável que a Covid-19 está fazendo um estrago muito maior nas periferias onde mora a maioria da população negra, justamente por esse déficit histórico de atuação do Estado e que remonta a um projeto racista de nação”.

Ela destaca que as condições de habitação, de acesso à educação e à saúde, de acesso e permanência no mundo do trabalho “ainda são bastante precários quando você é um homem ou uma mulher negra”. E aponta: “O racismo interfere nas condições de vida da população nas cidades. Penso que a pauta política, vinculada à superação do racismo e dos problemas que envolvem a população negra brasileira, precisa ser incorporada nas plataformas, seja de candidatos negras e negros, seja de candidatos e candidatas brancas, que precisam ter esse compromisso com a luta antirracista”.

Para Ângela, “é impossível pensar um projeto de cidade sem imaginar a importância e a centralidade de implementar programas municipais de prevenção à violência contra a juventude negra, haja vista que a faixa entre os 15 e os 21 anos é a de maior vulnerabilidade da juventude negra. É também impossível a gente pensar qualquer forma de gestão das cidades sem implementar programas municipais de proteção à vida das mulheres negras, que sofrem tanto as violências do Estado quanto a das instituições”.

Ela cita como exemplo o sistema de saúde: “temos dados do racismo institucional materializado na violência obstétrica: mulheres negras que não são tocadas nas consultas de pré-natal, que não recebem anestesia no parto, que não têm todo o cuidado das equipes médicas ao parir e nos primeiros dias do seu puerpério. Então, tem algo muito grave acontecendo na sociedade brasileira que é materializado neste descaso com a vida negra. Penso que a defesa da vida da população negra desde a concepção até a vida adulta e o período da terceira idade precisa constar no conjunto das plataformas eleitorais. Isso não é algo pontual, acessório; é uma pauta que, junto com a equidade de gênero, precisa transversalizar a agenda política para as cidades”.

 

Por Priscila Lobregatte