A economista do Dieese, Patrícia Costa, avalia a inflação dos alimentos básicos e a falta de políticas de segurança alimentar do governo. Com fim da política de valorização do salário, flexibilização da contratação e redução do auxílio emergencial, o governo sinaliza para o arrocho na capacidade de consumo das famílias.

Na live “Política de segurança alimentar e o preço do arroz”, concedida pela supervisora de pesquisas e economista do Dieese, Patrícia Costa, foram discutidas as motivações da inflação de alimentos básicos, assim como o desmonte das políticas de segurança alimentar do Governo Bolsonaro.

Patrícia foi assessora do ex-diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, no Consea, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Com isso, ela consegue apontar que políticas deveriam ser permanentemente aplicadas para evitar chegar ao momento atual, de emergência inflacionária. Enquanto a primeira ação do governo Lula, em 2003, foi criar o programa Fome Zero, como prioridade simbólica número um do governo, nos primeiros três dias de governo, Bolsonaro extinguiu o Consea . Com o fim do Conselho, veio o fim do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e o desmonte dos armazéns da Conab, assim como dos estoques de alimentos que regulavam o preço nas cidades.

Em 2015, os estoques médios mensais de arroz da Conab ficaram em 1.629 toneladas. No ano seguinte, já na crise do impeachment de Dilma, caíram para 88 toneladas. Durante o governo Temer, a média mensal ficou em torno de 30 toneladas mensais, caindo para 22 toneladas neste um ano e meio do Governo Bolsonaro.

No início da pandemia, eram comuns as notícias da corrida pelo botijão de gás, com os mais pobres cozinhando com lenha. Agora, é a corrida atrás dos produtos básicos, simbolizados no saco do arroz, que está ficando tão caro quanto a picanha. O aumento acumulado neste ano, até agosto, é de 19,17%, segundo o INPC-IBGE.

O preço da cesta básica aumentou, no mês de agosto, em 13 capitais. A mais barata foi a de Aracaju, com preço médio de R$ 400; a cesta básica mais cara foi a de São Paulo, onde o preço médio ficou em torno de R$ 540. Ou seja, o auxilio emergencial de R$ 300 não compra nem a cesta básica.

Patrícia explica o papel do auxílio emergencial, o efeito da desvalorização cambial nos preços, o aumento da área de plantio de monocultura de exportação, o papel da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e do estímulo ao consumo interno. Mas Patrícia também aponta suas perspectivas para o futuro da economia, do consumo e da inflação nos próximos meses, com o arrefecimento da pandemia.

“Poderia ser uma saída, sim, para essa pandemia, para esse período de paralisação econômica, para uma retomada, mais dinheiro na mão da população para que ela pudesse gastar, estimular o consumo, a produção e o investimento, para a gente entrar num círculo virtuoso, que parece que não vai acontecer”, sinaliza.

Leia abaixo a edição da entrevista:

Cezar Xavier: O vice-presidente Hamilton Mourão “explica” um aumento da demanda causado pelo auxílio emergencial. Ou seja, a culpa seria dos pobres que não comiam arroz e agora estão comendo. A solução seria o brasileiro começar a comer menos arroz, Patrícia?

Patrícia Lino Costa: É um erro, mais uma vez, o governo dizer que o problema da inflação no Brasil é um problema de demanda, do lado de quem compra. O que a gente observa é um grande problema de oferta.

A taxa de câmbio é um dos principais motivos da crise de oferta. Com o real depreciado em 5,5 vezes em relação ao dólar, fica muito mais lucrativo para o produtor mandar seu estoque para fora do país. Ele recebe em dólar, e quando entra aqui, recebe o valor vezes 5. Assim, com a taxa de câmbio depreciada, há um estímulo à exportação.

Nos últimos tempos, temos visto o aumento da exportação de produtos básicos, como a carne, por exemplo. São dois anos batendo recorde de volume de carne exportada para outros países. Com isso, a carne se torna praticamente inacessível para as famílias de baixa renda no Brasil, devido ao alto custo.

Com o aumento da exportação de soja, o óleo tem sofrido aumentos constantes para o consumidor brasileiro. Do mesmo modo, de abril para maio, já no período da pandemia, temos quebrado recordes de exportação de arroz, multiplicando por quatro o volume de exportação, o que aumenta o preço para o mercado interno.

Aliado a isso, a estiagem dificulta a produção, o que também impacta no preço do produto.

Quando se fala em aumento da demanda por produtos básicos, é preciso entender que, com a pandemia, nove milhões de trabalhadores perderam seu trabalho, segundo o IBGE. A maioria neste número é de trabalhadores de baixa renda, porque quem tem mais qualificação e pode continuar trabalhando em home office manteve sua renda integral. O que é uma grande perversidade, pois quem tem trabalho mais precarizado, informal, de menor renda, perdeu seu trabalho.

No momento em que isso acontece, o que a gente percebe é um aumento de preço dos alimentos básicos, batendo recordes de exportação, enquanto o resto do mundo está fechado para exportações. Os outros países entendem que alimentação é questão estratégica de segurança nacional. Nós estamos enviando nossos alimentos pra fora, o setor de agronegócio tem lucros imensos e, internamente, a população brasileira vai pagar mais.

Eu não entendo essa suposta retomada da economia que o governo alardeia. Nós chegamos ao fundo do poço, então qualquer aumento do primeiro para o segundo trimestre vai parecer melhora. Mas isso não significa que a população brasileira vai estar de novo nos seus empregos, vai ter melhores salários. É importante lembrar que, desde 2016, a modernidade da reforma trabalhista trouxe uma enorme precarização, com crescimento muito baixo no nível da ocupação, um grande número de informais e precarizados e uma redução no rendimento. É nesse cenário ruim que a gente entra na pandemia e fica muito pior, quando nove milhões perdem seus empregos.

Com isso, o auxílio emergencial repôs parte dessa perda e permitiu que as pessoas pudessem, pelo menos, se alimentar.

Donos de supermercados apontam a especulação por parte dos produtores, que estão se aproveitando do recebimento do auxílio emergencial pela população mais pobre para ampliarem as margens de lucro. Já os produtores alegam que os aumentos decorrem da alta do dólar e das compras maiores da China. Apenas em agosto, as vendas ao exterior quadruplicaram comparado com agosto do ano passado. Bolsonaro pediu a produtores rurais e aos supermercadistas que, “num ato patriótico”, segurem os reajustes. Faz sentido pedir isso na propalada economia de livre mercado?

Não faz sentido pedir que os supermercados segurem os preços “num ato patriótico”, quando se defende uma sociedade de livre mercado. Ato patriótico teria que ter o governo, ao executar, ao longo do seu mandato, políticas que impedissem chegar a esse ponto de fazer apelos por controle de preços a empresários.

Existe uma redução da oferta, em que alguns produtos são despejados nos mercados por serem mais perecíveis, como tomate, mas outros podem ficar armazenados esperando melhores preços, como está ocorrendo com o arroz.

Segundo o IBGE, em 10 anos, a área de plantio de arroz no Brasil encolheu 40%. No mesmo período, a área da soja cresceu cerca de 60%. Existe uma correlação entre a prioridade ao agronegócio e o descaso com a agricultura familiar neste episódio?

A verdade é que alguns produtos estão perdendo espaço para culturas mais lucrativas como a soja. O produtor vai dedicando cada vez mais área de plantio para a soja que vende melhor. A área do arroz caiu 40% enquanto a da soja aumentou 60%.

O produtor vai atrás do lucro, porque ele usa insumos importados que são pagos em dólar, o que multiplica por cinco o preço. Por isso, é preciso haver políticas que auxiliem na redução de preços. Alimentação é questão de soberania nacional e não pode ser deixada para a decisão das pessoas que só pensam no lucro.

O insumo para produção de leite, que é milho e soja, também está vindo muito mais caro. Quando o preço do produtor aumenta, não significa que ele está tendo lucro maior.

A classe média protestava contra os governos anteriores reclamando da alta do dólar, porque fica mais difícil viajar para o exterior e fazer compras em dólar. Mas não é só pra isso que serve o controle cambial. Fala-se em uma  cotação ideal para o dólar não prejudicar a balança comercial, desequilibrando as exportações e as importações do país, assim como o consumo. Agora, estamos com uma cotação do dólar que parece não preocupar nem Bolsonaro, nem Paulo Guedes (ministro da Economia). O governo está se omitindo no controle cambial?

Há muito que não se tem controle cambial. Antes havia a banda cambial, quando o dólar atingia um patamar alto e o governo fazia uma intervenção. Agora, aparentemente, o governo está considerando bom este patamar, porque algumas pessoas estão se beneficiando com o dólar alto, principalmente os exportadores. Quem está se beneficiando disso é interessante para o governo, por isso ele se omite em tentar reduzir a cotação do dólar.

O Brasil precisa definir o que quer ser na cadeia internacional de produção. Isso define que patamar quer ter para o dólar. Se a gente quer ser primário exportador, queremos voltar ao que éramos antes da nossa industrialização, e vamos virar uma grande fazenda, ótimo! Estamos no caminho certo para isso.

Com uma taxa de câmbio deste tamanho, para um país que não produz tecnologia, não produz parte dos insumos da sua indústria, o produto importado entra muito mais caro. Acaba sendo um tiro no pé da indústria brasileira.

É preciso responder essas perguntas para entender porque o governo está achando boa essa taxa de câmbio.

E para a Disneylândia, ninguém mais vai, nem pelo dólar, nem pela pandemia.

Passados 16 anos, no dia 3 de janeiro, Bolsonaro emitiu uma Medida Provisória que acabou com o Consea, de onde surgiu a ideia do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Que consequências teve o fim desse conselho?

Eu assessorei o conselheiro do Dieese no Consea, o Clemente Ganz Lúcio.

A agricultura familiar mostrou que muitas famílias saíram da insegurança alimentar. Famílias que estavam no interior de estados de menor renda, conseguiram sair dessa situação de insegurança alimentar.

Quando você olha para as famílias e vê que uma parcela imensa delas não consegue comer direito, são pessoas que vão ter dificuldades de desenvolvimento, dificuldades cognitivas, problemas de saúde, porque não comem direito na sua infância.

Acho importante falar da agricultura familiar, porque ela trouxe ao produtor a possibilidade de diversificar o que plantava. Em vez dele ficar num produto só e o resto na subsistência, ele passou a trazer uma variedade de produtos para atender às escolas da região, os hospitais, enfim, a população do entorno da plantação.

Acho que foi um programa muito exitoso e a ausência dele tende a levar, mais uma vez, esses produtores e as famílias a uma situação de insegurança alimentar, o que é muito ruim em qualquer momento do país.

O Consea faz falta num momento de inflação de alimentos como esse?

Sim, porque o Consea olhava e estudava o problema de vários produtos, medindo e estimulando a agricultura familiar e os produtos que estavam todos sendo enviados para fora do país.

Quando você tem uma regulação do governo, um órgão que vai olhar para esses problemas da cadeia, fica mais fácil o governo ter informação, até para não sair por aí falando que o problema da inflação é que as pessoas estão comendo mais. Você passa a ter uma informação mais atualizada dos problemas, para que as políticas possam ser mais efetivas evitando chegar a esse ponto que estamos hoje. A população que paga isso é a que teve auxílio emergencial reduzido, porque o governo acha que isso está estimulando a inflação.

A Conab tem o papel de regular os estoques de alimentos nas cidades, assim como impedir a especulação nos preços, com seus armazéns sempre cheios de sacos de arroz, por exemplo, para o caso de haver desabastecimento. A Conab não está dando conta dessa tarefa?

Temos uma perda do papel da Conab com seus estoques reguladores, que garantiam o preço dos alimentos. Há, ainda, um desmonte da agricultura familiar, que deu muito certo por apresentar números muito bons, com muita gente saindo da faixa de insegurança alimentar. Era uma agricultura limpa, sem agrotóxicos, com alimentos melhores oferecidos à população mais pobre do entorno. Essa política foi desmontada.

Não saberia dizer, no momento, qual o tamanho do desmonte que foi feito na Conab. Desde a presença de técnicos muito bons e estudiosos da Conab que apresentam dados e podem dar todas as informações para o governo atual, a respeito do que está acontecendo efetivamente com o preço dos alimentos, com o estoque, pensando políticas para lidar com a baixa oferta e estoque.

Não adianta falar que vai diminuir  o imposto de importações do alimento. Essa política tem que ser pensada sempre. Não dá pra num momento de emergência fazer qualquer coisa de maneira atabalhoada. Tem que ter pessoas que estão olhando para isso o tempo inteiro e que são chamadas a contribuir num momento como esse para que o governo faça uma política de contenção da alta de alimentos das famílias mais pobres.

Já faz um tempo que a família brasileira vem pagando mais, também pelos serviços públicos. A família de baixa renda fica premida, porque a renda dela diminui com o trabalho cada vez mais precarizado e o rendimento não cresce, mas ela tem que pagar todo ano o reajuste da água, da luz, do gás, que depois de 2016 passou a oscilar muito, até que o governo impôs esse intervalo de três meses para o reajuste do gás. Mas, de qualquer maneira, o preço do botijão é muito caro. Está sobrando muito pouco para a família brasileira poder comer com qualidade. Este problema é muito anterior à pandemia.

O desmonte da Conab mostra que isso não é importante para o governo. Essa seria a ideia do livre mercado: tudo vai se ajeitar pelo preço. E não é isso. Tanto não é, que os países desenvolvidos não estão reagindo da mesma maneira que o Brasil. Não estão batendo recordes de exportação como a gente, o que significa que estamos tirando daqui para mandar pra fora em busca de maior lucro.

Durante o início da década, havia um estímulo ao mercado interno, o que aqueceu o consumo e segurou um pouco a chegada da crise internacional no Brasil. Agora, até quando o governo anuncia recursos para a Agricultura, está falando de estímulo às exportações. Essa falta de políticas de segurança alimentar não representa também um desestimulo ao mercado interno como motor do desenvolvimento do país?

No passado não muito distante, testemunhamos uma série de políticas que priorizavam o acesso das famílias aos bens. Para isso, foi feita distribuição de renda, política de valorização do salário mínimo, acesso ao crédito. Estava garantindo às famílias que tinham uma demanda reprimida por falta de renda, a possibilidade delas comprarem.

Isso faz com que o consumo das famílias, um dos componentes do PIB, cresça. Atualmente, isso não vem acontecendo. Pelo contrário. O próprio diagnóstico dado pelo Mourão, de ser inflação de demanda, já indica onde eles vão arrochar: no salário mínimo que já não tem mais política de valorização, portanto não cresce da mesma maneira. O auxílio emergencial vai ser reduzido à metade.

Poderia ser uma saída, sim, para essa pandemia, para esse período de paralisação econômica, para uma retomada, mais dinheiro na mão da população para que ela pudesse gastar, estimular o consumo, a produção e o investimento, para a gente entrar num círculo virtuoso, que parece que não vai acontecer.

As pessoas acham que esta é mais uma consequência temporária da pandemia. Se continuar a atual política para o abastecimento de alimentos, não corremos o risco de continuar a ver os preços dos alimentos aumentarem por muito tempo?

A gente vai correr alguns riscos. Se não fizermos nada em relação a isso, a inflação não vai chegar numa meta bem baixa, como quer o Paulo Guedes. A consequência vai ser algum tipo de política que não estimule o nível de atividade, como o aumento dos juros que pode ser muito prejudicial.

O que vem pela frente, se não for alguma política de estímulo ao mercado interno, vai ser muito negativo ainda para a população, que já vem premida pela necessidade de flexibilização da contratação, pelos contratos intermitentes, pela baixa renda, pela informalidade, pela falta de emprego, de oportunidades, de direitos…

É muito ruim o que vem, se não houver uma ação desse governo para colocar o Brasil num rumo de crescimento com desenvolvimento. Porque não basta só crescer. Já crescemos lá no “milagre econômico” dos governos militares e foi o maior aumento da desigualdade que podia existir num país. O Brasil cresceu 15% e não tinha sindicato, não tinha proteção do salário, era um nível de adoecimento muito grande da população. O diagnóstico era de que precisava segurar o salário, portanto as famílias ficaram premidas pela inflação dos alimentos e houve o grande movimento contra a carestia.

Se nada tiver para que se cresça com desenvolvimento, um crescimento que traga bem estar às famílias, principalmente às mais pobres, provavelmente a situação vai ser caótica.